Sunday, June 01, 2008

O Anjo do Espelho

Na casa escura e simples, de dois cômodos apenas, refugiava-se de sua rotina, nesse fim de semana cinzento, uma jovem senhora de nome Agata. As gotas de chuva fina e incessante, que já durava o dia inteiro, escorriam pela vidraça da única janela que dava para o céu. Aqui tudo tinha a cor e o cheiro de mofo, móveis antigos que ameçavam desfazer-se pelo tempo, um piso escuro de camadas de sujeira que deixavam apenas uma vaga idéia do que um dia tivesse sido um belo ladrilho português, marrom e laranja, parecido com os da parede da cozinha, os que ainda não haviam caído. Uma velha chaleira, esmaltada, azul, assoviava na única boca, do velho fogão, que ainda funcionava. Um bom e quente chá de erva mate cairia bem a essa hora, você deve imaginar, mas a quantidade de água a ferver denuncia a intenção de um banho vespertino. Costuma ser bem frio aqui à noite. Ainda são por volta das 5 da tarde, mas a chuva não parece intencionar dar uma trégua, e a noite já começa a estender seus longos braços na linha do horizonte. Não que se pudesse ver o horizonte daqui, incontáveis fileiras de casas e altos muros, e sobrados e portões assomam diante da paisagem íngreme, de todos os lados.

Uma brisa gélida que encontra seu caminho por entre os vãos da porta, lembra Agata da urgência de seu banho. Ela se dirige ao fogão e com um velho pano de prato, com gastas flores pintadas, retira a velha chaleira, de cabo metálico, e a leva para o pequeno banheiro. Agata empurra a cortina que separa o banheiro do resto da casa com o cotovelo e despeja a água quente numa grande bacia, já cheia até a metade, com a água fria do chuveiro que há muito não funciona. O banheiro tinha apenas uma privada suja e baixa e um lavatório com a louça quebrada na borda. Podia-se ver todo o cano que levava a água para o esgoto. Sobre o lavatório de borda afiada havia um antigo e enferrujado espelho. Como alguns dos outros móveis da casa, parece que muito antigamente deve ter sido um espelho de considerável valor. Sua moldura era de metal, prata na verdade, mas pelo aspecto qualquer um diria que era feito de chumbo, tão velho e oxidado que era. A moldura era oval e desenhada, no seu topo havia a pequena face do que parecia ser um anjo, rechonchudo e sorridente, com direito a ramos de oliveira em sua fronte, cachinhos sobre os ombros e covinhas nas bochechas. Não que Agata tenha sequer uma vez na vida reparado nesses detalhes. Aliás passava em frente ao decrépito aparato várias vezes ao dia, e havia feito isso por anos a fio sem nem mesmo lançar-lhe um olhar que fosse. O espelho, por sua vez, também não fazia questão de servi-la, portanto, a ignorava.

Agata repousou a velha chaleira sobre o tampo fechado do vaso e descalçando um dos pés, por demais enrugado e nodoso para uma mulher de sua idade, da surrada sandália de couro testou a temperatura da água para seu banho. Estava um pouco quente, pensou, ainda bem pois a água se esfria logo quando se toma esse tipo de banho. Estava acostumada, é claro, e um banho não quente para ela era pouco desconforto. No entanto, tinha que evitar que aquelas bronquites mal curadas voltassem a atormentá-la. Despiu-se rapidamente de sua camisola, colocou-se em pé na bacia e começou a aspergir sobre si, com uma caneca, a água morna. De olhos levemente fechados, sentia a cada caneca d’água, quando o fluido calor escorria de seu pescoço pelas costas e seio até o colo e as coxas, aquela sensação morna, de toque, que só essa espécie de banho pode proporcionar. Sentiu-se jovem novamente, Vênus a nascer, como se seu corpo tivesse se livrado de grossas camadas de tecido e de pesadas peles e de gorros e agora estivesse nu, pronto para receber o calor do sol e a brisa das colinas numa manhã de primavera. Lembrou do cheiro de flores após uma chuva de verão. Tateou por um sabonete, então. Encontrou-o. Pequeno demais, e ressecado demais sobre a velha bucha a se desfazer. Lamentou Agata, não a última de suas lamentações, ter que sair de seu banho purgatório para apanhar um outro sabonete, maior, sobre a pia do lavatório. Ah!, de tão morna água, ter que tocar o chão gelado, amaldiçoou. Esticou-se, pôs toda extensão de seu braço mas o objeto desejado estava do lado oposto da pia, a parte não quebrada. Tocar o chão faz-se necessário, mas só uma pontinha do pé, talvez? Para não me poupar da boa aventurança de um sonho enquanto desperta. Pisou a ponta do pé sobre a fria cerâmica, quase lá, agora falta pouco. Extendeu-se só um pouco mais. Peguei!...Ugh!

O suspiro morreu nos pulmões, sem nunca chegar aos lábios. Ao tocar o sabonete, o traiçoeiro pé direito, úmido, faltou em sua função, não agarrou-se ao chão. Cedeu. Escorregou para trás como quando se tenta andar no gelo, projetou o corpo de sua ama para frente, com todo o seu peso. Ainda esticada e na velocidade do golpe dado por seu pé, Agata violentamente projeta seu pescoço, a carne macia, a veia pulsante: reação involuntária ao susto, contra a letal chanfradura do lavatório quebrado. A lâmina chinesa, de corte cruel, mais fria que os próprios tridentes de Tritão das profundezas, mais fria que as adagas do próprio Hades do mundo escuro, fizeram jorrar o quente, escarlate líquido da vida, o coração acelerado expulsando-o da pobre dona. Agata rolou sobre seu ventre, a cada tentativa de respirar grandes goles de sangue lhe invadiam os pulmões. O corte queimava sob sua face e a cabeça zunia numa corrente acelerada, o instinto. Cega de dor e de desespero tentava levantar-se. O pescoço, porém, não respondia mais. Os nervos do movimento e firmeza haviam sido rompidos, os músculos, arrebentados. E o coração continuava, com grande esforço e pressa, a livrar-se de sua vida. Sentiu como se a sufocassem. A cabeça girava, afogada em seu próprio sangue. As unhas esfacelaram-se, tamanho esforço, não sei, de se agarrar a alguma coisa, apenas encontrando o chão e as paredes ásperos. Os olhos ardiam e as pernas chutavam violentamente. E então.

E então, silêncio. Para onde foram o frio chão e o mal iluminado cômodo? Para onde foram as dores de queimadura e corte que digladiavam sobre a minha possessão? Para onde foi o medo? Não. Medo não. Não existem tais coisas. Há uma criança rindo pela casa, sorriu. Sentiu uma lágrima escorrer pelo rosto. Será saudade? Não. Há uma criança sorrindo pela casa! Como vai meu anjo, dormiu bem esta noite? Ah, eu não te disse que essas coisas não existem... Está seguro agora meu anjo. Não, querido, papai não vai mais voltar. Mas ele me deixou para cuidar de você. Eu estarei sempre aqui... Amanhã será seu primeiro dia na escola, hein? Parabéns!... Está com fome? Hoje preparei um almoço especial para nós dois. O quê? Sua comida preferida. Batatas fritas e aquela salada maravilhosa que a vizinha nos ensinou... Bom garoto, você é o garoto mais inteligente do mundo... Vamos lá, tem que tomar esse remédio. Será para o seu bem... Filho, a mamãe vai começar um novo emprego hoje. Não, mas nós vamos nos ver à noite, prometo... Eu preciso trabalhar, não entende?... Escute, você já está bem grandinho, eu vou deixar algo para você comer... Você parece triste, hoje é seu aniversário. Dez anos!... Olhe, amanhã eu saio mais cedo, vá à padaria e compre os pães, ok? Não quero saber, só traga os pães!... O quê? Eu quero saber onde está meu filho! EU QUERO VER MEU FILHO! Me soltem, me deixem ver meu filho!... Filho!... Ah, meu anjo, não chore querido, mamãe está aqui.

Desculpe,mamãe. Eu não trouxe o pão.

Não!... Meu filho!... Eu quero saber quem fez isso com meu filho! Eu quero saber quem tirou meu filho de mim!! Me soltem, me larguem!

Não, não quero comer. Não estou com fome já disse!... Me deixem em paz!... Como assim, não tenho feito meu trabalho direito?... Você sabe que eu sempre me dediquei!... Eu estou bem!... Não pode me despedir! Você não sabe o quanto eu SACRIFIQUEI por esse cargo!

...

O quanto eu sacrifiquei por esse cargo... o quanto eu sacrifiquei por esse cargo... quanto eu sacrifiquei... sacrifiquei... sacrifiquei...

Ei! Não olha por onde anda?... quase me atropelou... ei senhor eu cheguei na fila primeiro, ei, olhe para mim quando eu estou falando... Senhor uma xícara de café por favor... senhor! Uma xícara de caf.. ei, será que alguém pode me atender aqui?... Ah, esse emprego é patético, quem é que deixa esse monte de papéis aqui para mim todo dia?... Que pessoal mais esquisito, parece que ninguém fala com ninguém por aqui... hm dia do pagamento, deve ser esse envelope... Como assim vocês cancelaram minha assinatura?... Ei, tem alguem ai? Hm, parece que a vizinha da frente se mudou... Aha para que me arrumar eu não vou sair mesmo... eu não vou sair mesmo... não vou sair mesmo... não vou sair mesmo... não vou sair... Mas, que espelho imundo! Eu não tinha nem reparado! Ah, não importa o quanto eu esfregue está enferrujado, não reflete quase nada, nem mesmo a mim!... não me reflete... eu não queria olhar mesmo... nem queria olhar... nem quero olhar mesmo... não ligo... ah, cortaram a energia de novo... quem liga, televisão é um saco!... mas rosas são legais, é rosas e batatas fritas, ... não são filhinho... perdão meu anjo.

Neste momento num violento chute, involuntário, o lavabo é atingido. A parede chega a tremer, o espelho solta-se e cai com um estrondo sobre a pia. Parte dele se quebra, parte ainda permanece. Olha para baixo como alguém do parapeito de um penhasco, observa o ir de Agata. Ela, desde quando não se lembra mais, mira o próprio olhar, banhado em lágrimas, no reflexo acima. Sorri para si mesma. Está quentinho aqui... que sono. E com o anjo por última lembrança, adormece.

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Oi, você gosta de pão?